Morte! Ela mesma. A morte. Ela ecoa em meus ouvidos, como iminente catástrofe. Antes fosse isso. Se eu morresse amanhã, viria ao menos fechar meus olhos minha triste Margot. Minha namorada de saudades morreria, se eu morresse amanhã. As vezes, é assim que desejo que fosse. Assim, morreria como mártir. Seria pardonado por todos os pecados e sepulcrado, seria, meu corpo.
Lágrimas derramariam ao meu leito. Donzelas apaixonadas e desapaixonadas, amigos de afeto e desafeto, familiares próximos e distantes, e quem sabe até mesmo alguma carpideira se fizesse presente, se eu morresse amanhã. Não. Anime-se um pouco, pois nem de longe vejo isso como uma alternativa. O suicídio é o caminho dos doentes e dos covardes, coisa que não sou.
Mas, então, quem sou eu? É uma pergunta válida, porém, no contexto empregada, torna-se confusa. Ao primeiro escrever nesta nota, tinha o objetivo de escrever algo para Margot, minha donzela, e, agora, questiono-me sobre minha existência? Por que será, então, que as duas coisas relacionam-se..? Somos seres independentes. De forma alguma, somos, realmente, feitos um para o outro. O Romantismo diria que sim, fomos. O Realismo, por outro lado, riria da minha cara.
Se essa é a verdade, então, por que tu, homem, criaste o Romantismo? A vida não bastava para ti? Não bastava nascer, mesmo que sem voto neste pesar, sofrer e morrer, assim como todos os outros que te precederam? Para quê criaste o romance e o fizesse o almejar de muitos, fantasia para poucos? A verdade, eu admito, não sei. Mas posso, no entanto, especular sobre ela. A historiografia não nos permite ter certeza sobre, certamente, nada. Tudo pode ser, afinal, uma grande forja. Podemos, ainda assim, considerar hipóteses plausíveis, e acho, ainda, sensato fazê-lo. Vamos lá então...
Lá estava Adão, sozinho. Olhava para o horizonte e via ele os animais a pastar. Bois, macacos, guaxinins, tamanduás, tatus, tico ticos, graúnas e, eventualmente, até mesmo uma baleia, que submergia quando ficava sem fôlego. Todos esses animais, com seus parceiros, vivendo, em harmonia e monotonia. Adão, nesse momento, sentiu duas coisas: inveja e tédio.
Inveja, porque como podia todos os seres terem alguém semelhante e, ainda que paradoxalmente, diferentes, para partilhar suas aventuras, desventuras, tristezas, agonias, emoções e até mesmo fluidos corpóreos. Adão, então, invejado, balbuciou em silêncio. Contentando-se com a infelicidade de sua existência. Mas contentou-se, ainda assim. Viveu, então, por mais mil anos, em harmonia e monotonia com os animais, ainda que sem mulher. E foi assim que nasceu seu tédio.
Adão, por fim, enlouqueceu. Largou as balbucias e soltou um urro de fúria ao deus Aton:
- Diabos! Sim! Diabos! Por quê eu?!
Aton, malandro que sempre foi, desde que o Universo fez-se o Universo, olhou indiferente para Adão, como que esperando um complemento de sua frustração, mas sem, no entanto, esboçar qualquer reação. Assim, retomou Adão seu raciocínio.
- Me deste o paraíso, seu maldito! Me deste todas estas terras, a riqueza que com elas veio, a fartura de com todos estes animais poder me alimentar, me destes os céus para observar, as águas para me banhar, e a imensidão para vaguear. Me deste até uma maldita árvore cujo qual os frutos não posso me alimentar, e disto nunca fiz questão. Mas sou incompleto. Por que tu me fizeste assim? Por que fizeste isso comigo?
Aton quebrou o gelo secular que havia mantido por todo aquele milênio. Aproximou-se de Adão, largou um velho e empoeirado sorriso de canto de boca e perguntou:
- O que queres, então, pobre rapaz?
Adão, coitado, não soube responder. Soube apenas argumentar:
- Sou sozinho. Todos os serem tem companhias para si. Até mesmo o Sol, que nem é bicho, tem a Lua para si. Eu... Não tenho nada... De que vale toda essa imensidão física se nem mesmo posso compartilhá-la, ainda que com a incerteza sobre qualquer coisa? Sou imortal. Eu nasci mas não vou morrer, e assim é o presente. Estou aqui, e estou vivo. Isso é ser imortal, porque não acaba. Um dia, de certo, acabará. Mas até que esse dia chegue, eu sou vivo, e permanecerei assim, sozinho, sabe-se lá até quando. Sabe... você criou aquela árvore para nos dar a incerteza. Para simbolizar a insegurança da vida e a perenidade da dúvida.
Cogito Ergo Sum eu disse, mas de que adianta questionar, se, no fim, não existirá significado algum. Será tudo o mesmo..?
Aton não soube o que fazer. Nem mesmo compreendera o que havia dito o Homem. Era o alpha e o omega, mas ainda assim não podia conceber as articulações de sua criação. Fez-se de de tolo, ainda assim. Manteve o sorriso, estimulando Adão a continuar. E Adão procedeu:
- A vida que tu criaste não tem sentido, velho senhor. Nada aqui tem um real propósito. Vê aquela montanha ali longe? De que adiantará que eu lá suba e entoque no ponto mais alto de sua magnitude um graveto? Ninguém estará lá embaixo para me congratular. Vê aquele pântano, completamente inundado e impossível de se transpor? De quê adiantará drená-lo, e lá fixar moradia, se não tenho ninguém para compartilhar o conforto do meu casebre? E aquela terra ao norte, cuja mata é branca de quase morta, e não muito se pode fazer para viver nela. De que adiantaria, com cuidado e amor, regá-la e trabalhar para ali cultivar, se só eu, sozinho, poderia usufruir da safra porvir? Vê, eloquente e magnânimo senhor, que não há sentido em nada se tudo farei sozinho.
Aton ouviu as palavras do infeliz e inacabado ser. Não compreendera suas indignações, mas indagou a Adão:
- E se eu criasse outro semelhante a vós para que, com ele, você pudesse partilhar a vastidão deste universo?
- Não posso dizer que seria grato. Continuaria sendo imperfeito. No entanto, não seria imperfeito sozinho. Teria alguém com quem partilhar a dor e as as mazelas da vivência.
- Esteja feito, então.
E, ao estalar de seus dedos, aquele grande Titan desapareceu. Fez-se o mundo escuro, até que, em poucos segundos, que quase pareceram uma eternidade, devido a confusão da escuridão ao meio dia, fez-se luz novamente. Adão estava deitado. Não lembrava-se da discussão que a pouco tivera com seu criador. A unica coisa que pudera notar era aquela figura a sua frente, a lhe tocar. Parecia não compreender o que era tudo aquilo. Tinha em si um olhar de terror e de surpresa, apreensão e curiosidade. Lembrara a Adão, mas não sabia de onde viera o pensamento, animais pequenos e felpudos que lembrara ter chamado de "gatos". Quando "gato" percebeu o despertar de sua presença, assustou-se. Levantou-se de um pulo e deu um passo e meio para trás. Pensara em correr mas hesitara. Estava a questionar tamanha semelhança e disparidade à sua forma.
- Quem é você? - questionou "gato".
- Sou Adão. - Retrucou em impulso, sem entender de onde vinham suas palavras.
- Eu sou Eva. Somos diferentes e, ainda assim, não há nada ao redor que me faça lembrar a minha forma, assim como não há nada ao redor que remeta à sua. Você tem uma coisas pendurada em sua pele que eu não tenho, e eu também tenho coisas penduradas em mim que você quase não tem, ou tem de menos. Quem somos nós e o que fazemos aqui?
Adão recordara-se do que aconteceu. Ele pedira ao seu criador que lhe trouxesse alguém para compartilhar as calamidades daquelas terras. Alguém com quem ele pudesse compartilhar as maravilhas e belezas do mundo, assim como questionar a dubiedade da criação. Então contou-lhe, Adão a Eva, sobre o mundo. Andaram até o Sul, e Adão mostrara ao outro os peixes. Mostrara-lhe aqueles que eram pequenos e coloridos, das mais variadas cores: amarelo, ciano, rubro, magenta e violeta e lilás. Mostra os médios, que era roseados e saltitantes. O outro ser demonstrou interesse por esses, mas demonstrara mais ainda pelos peixes grandes. Eram estes negros, com olhos e barriga branca. Eles jogavam aos céus alguns outros de cor cinzenta, até que lhes houvesse quebrado os ossos para facilitar a mastigação. Era dúbio. A morte, a vida, a alvorada e o crepúsculo.
Cansaram-se do mar e decidiram vaguear em outra direção. Dessa vez, direção avulsa. Observaram ao longe o céu escurecer repentinamente. Perceberam que a negritude vinha de uma direção, e nortearam-se em direção aquele caos. Bem abaixo de onde se encontrava aquela tempestade de cinzas, que era a orgiem de todo o empoeirado, estava uma grande monte enraivecido. Subiram nele e, lá de cima, olharam para o seu centro. Viram labaredas de chamas cor alaranjada, com pequenos pedaços que pareciam sumir e surgir a todo o momento de cor escura-azulada. Não entenderam o que era tudo aquilo, entenderam apenas que estar por perto não era agradável. Olharam ao horizonte, por onde a fumaça percorria e as formas vermelha-alaranjadas escorregavam, e perceberam a destruição ao seu redor. Mas foram mais sábios que isso, perceberam que após a destruição, a paisagem natural era mais bonita do que a posterior, e que ela era mais bonita o quanto mais se aproximava do que resolveram chamar de "lava". Não compreenderam a complexidade de tudo aquilo, mas também não importaram-se com o que os cercavam. Cansaram-se de andar e resolveram deitar para repousar na sombra de uma bela árvore de frutos luminosos.
- Eu não compreendo nada disso. - Disse Eva, em estado reflexivo.
- Eu tampouco. As vezes me parece que tudo a ser feito é apenas observar. Somos tanto paisagem quanto tudo que nos cerca... E qual o propósito? Não há, acredito eu. - Completou Adão.
Foi então que um daqueles frutos luminosos acertou em cheio a cabeça de Adão. Ele olhou para o fruto e o examinou. Ele brilhava e parecia ser tentador, sem aparente motivo. Ao tocá-lo, sentiu que a dúvida e a incerteza que norteavam seus pensamentos provocaram maior aflição. Eva reparou o que estava acontecendo com o confuso rapaz a sua frente, e resolver tomar para si o objeto tentador. Sentiu o mesmo. Ela, no entanto, sentiu vontade de comê-lo. Sabia, intuitivamente, que aquilo saciaria sua fome. Não a fome fisiológica, mas a fome intelectual.
Em um impulso, ela direcionou o fruto à boca, mas Adão a repreendeu. Lembrou-se do mau sentimento que aquilo lhe provocara e sabia, no fundo da sua consciência, que não devia fazê-lo. Sentiu medo. Explicou, sem êxito em ser compreendido por Eva, o que sentia.
Foi então que as folhas daquela arvore, e de todas as outras semelhantes àquela, começaram a chacoalhar. De cima dela vieram seres que Adão nunca havia visto antes. Eram semelhantes a ele, porém, de maneira diferente a de Eva. Andavam em quatro patas na maior parte do tempo e, por vezes, ainda que em dificuldade, suspendiam os membros superiores para articular. Eram totalmente peludos e tinham pés que pareciam com as mãos. Adão se assustou. Eva, porém, aceitou o estranho com empatia. Percebendo que aqueles seres vinham em sua direção, abriu um sorriso convidativo.
Eles todos traziam na mão aquela mesma fruta luminosa que causara estranhamento aos habitantes anteriores. Desfrutavam de seu sabor sem preocupação alguma. Pareciam, na realidade, até mais calmos. Adão não compreendeu a cena. Lembrava-se do criador lhe dizendo que, uma vez provado o sabor daquele fruto, não haveria volta. Ele estaria condenado. Não lhe dissera, porém com o quê. Assim, aos sussurros, Adão contou a sua amiga o que sentia. Ela lhe encarou com estranheza.
Os outros, que assistiam a cena, riram entre si. Foi aí que disseram:
- Humano tolo! Não percebe o que te cerca! É tudo seu! Os mares, as terras, os animais, os prazeres e os pecados. São todos seus! Tu não segues em frente por medo. Medo de se machucar e medo do incerto. Prefere continuar nesta vida pacata tua de certeza. Você não pode morrer, mas, também, não pode viver. Coma o fruto. Ou não. Faça sua escolha. Você, de alguma forma, sabe o que lhe aguarda.
E ele sabia. Adão entendia o significado do fruto. Para Eva, era mais claro. Ela sabia o que deveria fazer. Sabia as consequências, mas tinha certeza do que deveria fazer. Havia de comer o fruto.
- E quanto a morte? Que sentido teria tanta beleza se não pudesse viver eternamente para contemplar toda a beleza natural das coisas?
- Baah! Que se dane a morte! E que sentido teria tudo isso se pudesse vê-lo para sempre? A virtude da beleza só pode ser encontrada no momento em que você decidir viver com as incertezas e sofrimentos que a precedem. Nada realmente terá valor enquanto uma gota de sangue não for derramada para solidificar a estrutura. Teu Deus é todo poderoso. Ele criou tudo isso, de fato, com um estalar de dedos. Mas tu, coitado, é só homem! Nunca terá capacidade para evoluir e fazer-se tao Deus quanto aquele que te criou enquanto não dar um passo que é desconhecido e amedrontador.
Eva comeu o fruto, e logo que sentiu o sabor da fruta entre seus lábios, compreendeu o que os outros tentavam lhe dizer. Adão era o único desentendido da história. Ela lhe explicou:
- Adão, amor meu, tu não perceber porque não tomou uma decisão. Você nasceu no conforto deste mundo, e com ele se acostumou. Nunca saberá o que lhe espera enquanto não comer a fruta. Não há o que ser explicado, pois é tudo uma questão de escolha. Por favor, meu bem, olhe para a luz que emana deste fruto, e coma-o.
E foi assim que, por um impulso generoso, Adão comeu o fruto. Fechou os olhos. Sentiu o suco percorrer sua língua e escorrer sua boca. Saboreou, mastigou e engoliu. Então, quando não restava nada mais dentro de sua boca, abriu os olhos e viu-se nu. Mas não sentiu vergonha, pois todos ao seu redor também estavam.
Percebeu, porém, uma voz, que vagava pelas redondezas gritando seu nome. Era Aton, e não lhe parecia mais tão grande assim. Antes era um Titan. Agora, apenas um velho carcomido.
- Adão, - dissera Aton - Percebes que estás nu. Por acaso comera do fruto proibido, como eu não lhe aconselhara? Maldito seja. Dei-te uma mulher e terras. Dei-te a natureza inteira para ser de tua posse e como tu me pagas, ingrato! Por esta blasfema, à tua mulher, multiplicarei a dor do parto. Ambos agora morrerão. E, ainda mais, a ti, darei a...
Adão o interrompera:
- Ao inferno com você. Pouco me importa o que me acontecerá. Compreendo agora que a vida só pode ser concebida se for forjada por medo e incertezas. Do futuro certo, nada se espera. Do incerto, por outro lado, tudo se pode esperar. Ele é o único que pode me oferecer algo que me agrada. Nada poderia vir de ti, da segurança, da certeza, do conforto e da clareza. Do incerto, por outro lado, tudo se pode esperar. Ao inferno com você. - Disse Adão enquanto dava na fruta outra grande e suculenta mordida.
O velho Aton se sentiu desanimado. Sua postura tornou-se curvada e, vagarosamente, andou em direção ao horizonte. Adão olhou para ele, seu pai, sem remorso ou culpa, pois entendia que era necessário dar um passo à incerteza para, incertamente, alcançar a felicidade.
Eva abraçou-o por compreender o pesar de sua atitude. Estava feliz com a atitude de seu cúmplice em aceitar as dores do mundo para viver, com ela, uma vida sofrida. Estavam nus. Sempre estiveram. Mas só agora perceberam, e só agora tiveram oportunidade de fazer juntos aquilo que é de natural relevância para os casais. Os homens primitivos não estavam mais por perto. O mundo era deles para fazer o que quiser...
E este é o meu mito da criação do romance. Ele existe porque, na realidade, que diversão teria a vida, sem uma pitada das lágrimas salgadas que vêm com ela? É como no parque de diversões que vamos vez ou outra. Se nos fosse dada a capacidade de ver se chegaríamos em casa, no fim da noite, em perfeito estado, vivendo naturalmente com a mesma saúde com a qual chegamos ao recinto, não nos divertiríamos nos brinquedos. Nos divertimos, por outro lado, por medo da morte. Ninguém realmente morre nesses brinquedos, mas é a incerteza e o medo que sentimos que faz tudo ser tão gostoso.
Garoto Comum
20.06.2019
16:57